Com maceioagora // Fonte ojornalweb
O fogo que destruiu o galpão onde estavam depositadas toneladas de donativos que deveriam ter sido entregues aos desabrigados da enchente que atingiu 19 municípios alagoanos transformou em cinzas as esperanças da dona de casa Maria Nerci da Silva, de 45 anos. Nascida e criada em Branquinha, município distante 64,1 Km de Maceió, ela diz que agora só espera duas coisas: ou ganhar a casa que o governo prometeu ou morrer “porque do jeito que tá, tá difícil de viver”, reclamou a mulher, ainda nova, mas com um rosto marcado por sinais de sucessivos sofrimentos ao longo da vida.
Bastaram poucos minutos de entrevista para Maria Nerci mergulhar em lágrimas. Em um choro que a remeteu a sua mais recente tragédia de vida. Dia 19 de junho de 2010, dia em que viu a pequena casa própria desmanchar-se diante da força da água.
“Tem nada não. Deus dá um jeito. Ele dá jeito em tudo. Consegui sair de casa com meus filhos e netos. Tudo vivo. Todo mundo tava (sic) muito assustado. Na cara ninguém sabia se ria pela vida que ficou ou se chorava pelas coisinhas que a gente tinha e perdeu. Agora, o que não dá para engolir, mesmo para eu (sic) que não tenho estudo de vida nenhum, é o povo de poder ter deixado tudo o que era nosso se queimar. O fogo veio do nada. O que a água de Deus tirou de nós, o fogo dos homens achou pouco e tirou da gente de novo”, tentou explicar o incêndio com a mais pura humildade e inocência de quem não sabe, ao menos, ditar as letras do próprio nome.
O endereço da família de Maria Nerci da Silva está agora resumido ao número 107. A numeração foi dada à barraca montada em Branquinha e onde ela mora com dois filhos e três netos. Todos são menores de idade. A criança mais velha tem 12 e a mais nova tem seis.
Lamento pelo fogo e pelo calor
Um pouco mais a frente da barraca 107 está a moradia da dona de casa Cleide Terto. Ela não soube dizer a idade. Mas soube dizer, em poucos segundos, quantos filhos tem. “Tenho sete. Sei porque o médico disse que estava bom de parar”.
Com um largo sorriso no rosto, ela contou que o marido está trabalhando. O sorriso de Cleide revela que ela faz parte de um seleto grupo entre as mulheres desabrigadas: ela tem marido e o marido tem emprego, o que garante uma pequena renda extra à família, além dos benefícios dos programas sociais federais.
“Até hoje não acredito que escapamos. Também não acredito que poderíamos ter passado o Natal e a entrada de Ano Novo com coisas novas e perdemos tudo no fogo que corroeu o que era nosso. Se os culpados pelo fogo fossem os pobres, tava tudo perdido. Como foram os ricos, não vai dar em nada”, reclamou.
Prefeita: “Branquinha não recusou donativos”
A afirmação feita pela Defesa Civil de que os donativos estavam ainda no galpão porque as prefeituras, cujas cidades foram atingidas pelas enchentes, afirmaram que as populações não mais estariam precisando de nada não convenceu a prefeita de Braquinha, Renata Moraes, que se disse revoltada com tal afirmação.
“Os prefeitos só são responsáveis pelos donativos depois que eles são entregues nas cidades. Antes disso, a responsabilidade é toda do Estado. Eu desafio alguém, quem quer que seja, a afirmar que Branquinha recusou as roupas e donativos que foram consumidos pelo fogo”.
Renata Moraes é ainda mais incisiva ao dizer que, mesmo que alguma prefeitura tivesse recusado os donativos, a Defesa Civil deveria ter feito a entrega diretamente às pessoas. Foi assim que agiram centenas de pessoas de boa fé que foram às cidades e procuraram diretamente os atingidos e não burocratizaram as doações nem a entrega dos donativos. “Recebi com revolta e indignação a notícia sobre o incêndio. Não sabia que ainda tinha tanta coisa estocada. Aliás, acho que ninguém sabia que havia tanta coisa armazenada e tanta demanda dos desabrigados e desalojados de Alagoas. Enquanto isso, Branquinha, particularmente, tenta se recuperar da segunda enchente que destruiu a cidade em apenas 48 anos de emancipação”, lamentou, fazendo referência ao desastre ocorrido há uma década.
Em Murici falta roupa e comida
Em Murici, a população de desabrigados e desalojados também está revoltada com a perda dos donativos. A adolescente Jéssica Maria dos Santos, de 16 anos, mãe de uma menina de sete meses, disse que chorou ao ver pela televisão várias roupinhas para bebês queimadas.
“Minha mãe me abraçou para eu poder parar de chorar. Só acreditei porque estava vendo tudo pela TV com a minha família. Se alguém me contasse, eu ia dizer que era mentira, que não podia ter tanta gente ruim no mundo que deixa queimar coisas que seriam dadas às pessoas que um dia já perderam tudo na vida”, desabafou a menina que mora na barraca 115 e divide os poucos metros com mais seis pessoas, entre os pais e irmãos.
Josefa Firmino da Silva é mãe de Jéssica. Aos 56 anos, ela também pode ser considerada uma exceção, já que a família conta com o pai dentro de casa. O pai de Jéssica é um dos moradores que foram aproveitados para trabalhar na construção das casas que serão entregues à população. “Quero acreditar que um dia a gente vai sair daqui. Todo dia que meu marido chega do trabalho, eu pergunto pela casa. E ela diz que tá saindo. Tomara que não demore muito. Está difícil viver com tantos problemas”, comentou.
Presidência vai investigar causas do incêndio
O incêndio que destruiu toneladas de donativos, no último dia 28, causou tanta repercussão que, no mesmo dia, a Presidência da República anunciou que iria investigar as causas do sinistro. No galpão estavam armazenadas cerca de 20 toneladas de donativos, entre roupas, calçados, mais de 1500 barracas e até alimentos não perecíveis. Cada barraca que foi incendiada custava em média R$ 5 mil. Tudo deveria ter sido entregue às vítimas da enchente. O que não aconteceu.
É que quase sete meses depois da tragédia que destruiu parte dos municípios dos vales do Mundaú e do Paraíba, a Defesa Civil Estadual ainda estava catalogando as doações vindas de todo país. Enquanto isso, os objetos que representavam a solidariedade dos doadores e a esperança das vítimas se amontoavam no galpão, que fica localizado na Rua Barão de Jaraguá, no bairro de Jaraguá.
A assessoria do Ministério das Relações Institucionais definiu que irá acompanhar, de perto, o resultado da perícia técnica que atestará a causa do incêndio e os motivos de haver estoque de material depois de tanto tempo, além de investigar o porquê da não-distribuição.
Bombeiros: doações não eram pedidas
O comandante do Corpo de Bombeiros, coronel Neitônio Freitas, afirmou que os donativos não estavam mais sendo procurados pelos municípios. “A informação que eu tenho é que estavam guardados roupas, barracas e calçados no galpão, todos destinados de doações para as vítimas da enchente. Como os municípios não estavam mais procurando, estávamos catalogando e organizando o material para futuramente encaminharmos às unidades de pessoas carentes”, disse, no dia do sinistro. A informação foi repetida pelo militares, durante a semana passada, durante depoimento no Ministério Público Estadual (MPE).
A distribuição e o armazenamento dos donativos para as vítimas das enchentes de Alagoas já foram alvo de investigação, quando três oficiais do Corpo de Bombeiros foram acusados de furto. Eles tiveram o mandado de prisão decretado pela Justiça. O coronel Josivaldo Feliciano de Almeida, o capitão Renivaldo de Lima Barbosa e o tenente Ederaldo dos Santos Gomes foram presos, assim como o soldado Dória. Todos foram soltos por terem sido considerados inocentes das acusações.
MPE começa a ouvir militares
Na última quarta-feira, o Ministério Público Estadual começou a colher os depoimentos para tentar descobrir os motivos pelos quais, após quase sete meses da enchente, mais de vinte toneladas de donativos ainda estavam armazenadas. Os trabalhos estão sob a responsabilidade do promotor Flávio Gomes da Costa.
Na ocasião, o secretário-executivo da Defesa Civil, tenente-coronel Denildson Queiroz, justificou que cerca de 80% das 20 toneladas de roupas que foram queimadas não prestavam para o uso humano.
“Estávamos fazendo a triagem de tudo o que estava guardado no galpão, mas a maioria das peças não servia para o uso. Cerca de dezesseis toneladas estavam em péssimas qualidades e não podiam ser doadas”, argumentou sem explicar porque as peças não serviam.