Se passaram sessenta anos desde que o Ato Institucional número 2 (AI-2) foi promulgado por um regime autoritário no Brasil, uma medida que ampliou a quantidade de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), alterando a composição e influenciando o equilíbrio entre os poderes.
Tradicionalmente, os livros de história do país destacam o AI-2 por ter restringido a atuação política ao estabelecer apenas dois partidos políticos oficialmente reconhecidos: a Arena, apoiadora do governo, e o MDB, na oposição. Além disso, esse ato retirou do povo o direito de eleger diretamente o presidente, transferindo essa decisão ao Congresso Nacional.
Contudo, o documento assinado pelo então presidente Humberto Castelo Branco em 27 de outubro de 1965 também promoveu mudanças de caráter mais sutil, mas igualmente impactantes, como a elevação do número de ministros do STF, de 11 para 16 membros. Essa alteração, à primeira vista menor, foi uma manobra que comprometeu o equilíbrio entre os poderes, pois permitiu a Castelo Branco nomear cinco ministros alinhados às diretrizes do regime militar, consolidando uma influência direta na mais alta instância do Judiciário brasileiro.
Ao facilitar a nomeação de ministros politicamente favoráveis ao regime, o AI-2 enfraqueceu a independência do Judiciário e buscou subordinar o Supremo ao Executivo, controlando, de forma parcial, uma das instituições essenciais à democracia.
Documentos históricos disponíveis atualmente no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam que a oposição ao governo reagiu à proposta de alterar a composição do STF. O senador Josafá Marinho (PST-BA), por exemplo, alertou que qualquer iniciativa para aumentar o número de ministros sem a aprovação do próprio tribunal seria inconstitucional, uma vez que a Constituição da época determinava que a composição do STF só poderia ser modificada mediante sugestão da própria corte, que já havia comunicado ao Executivo a necessidade de reformas judiciais sem a necessidade de ampliação de seus quadros.
O debate também contou com a defesa do próprio STF, representada pelo então presidente, o senador Aarão Steinbruch (MTR-RJ), que destacou a importância da corte como um baluarte das garantias democráticas, mesmo admitindo que suas possíveis falhas nunca comprometeram a estabilidade institucional do país. Steinbruch criticou a tentativa do governo de aumentar os ministros, interpretando como uma manobra para colocar “revolucionários” — termo utilizado na época para se referir aos opositores do regime — no tribunal, numa tentativa de manipulação jurídica.
Na disputa verbal, o ministro da Guerra, marechal Artur da Costa e Silva, e o presidente do STF, Ribeiro da Costa, protagonizaram um conflito público, evidenciando a tensão entre os poderes. Os militares planejavam ampliar a quantidade de ministros na tentativa de sufocar o tribunal, que vinha dificultando ações ilegais da ditadura ao conceder habeas corpus a presos políticos, que eram considerados subversivos pelos militares.
O historiador Mateus Gamba Torres, especialista em história constitucional e autor do livro “O Discurso do Supremo Tribunal Federal na Ditadura Militar”, explica que, em 1964, os ministros do STF inicialmente apoiaram o golpe, mas posteriormente mudaram de postura, ao perceberem que o regime buscava controlar o Judiciário para garantir a impunidade de seus apoiadores, especialmente após uma série de investigações e processos militares que perseguiam opositores.
Entre as figuras políticas que receberam habeas corpos do STF, estão os governadores Miguel Arraes, de Pernambuco, e Mauro Borges, de Goiás. Apoiando essas ações, o senador Edmundo Levi (PTB-AM) destacou o papel do tribunal como um bastião de justiça, ao citar decisões emblemáticas que libertaram presos políticos e impediram prisões arbitrárias, evidenciando uma resistência inicial do Judiciário às ações autoritárias.
Paralelamente, a oposição ao regime, representada pelo senador Arthur Virgilio (PTB-AM), criticou duramente os atos do governo em relação ao afastamento de figuras como Juscelino Kubitschek, ex-presidente e senador cassado por AI-1, além de denunciar a perseguição a JK por meio de investigações que insinuavam ligações com o comunismo, embora tais acusações fossem consideradas infundadas e politicamente motivadas.
Para os militares, a reforma do STF foi uma estratégia para consolidar o controle do regime, especialmente após as eleições estaduais de outubro de 1965, que mostraram uma crescente força da oposição. Como resposta, o AI-2 determinou a votação indireta para a presidência e a redução do número de ministros do STF, de 16 para 11, por meio do AI-6, em 1969, consolidando a supremacia do regime no Judiciário e eliminando qualquer resistência jurídica às ações autoritárias.
O contexto político também revelou rumores de conspirações internas entre os militares, com grupos de linha dura planejando ações até mesmo para remover ou assassinar Castelo Branco, considerado por esses setores como insuficientemente radical na condução da ditadura. A tensão culminou com o fechamento do Congresso Nacional em 1966, sob respaldo do AI-2, e a suspensão temporária das atividades legislativas, marcada por tropas do Exército e uma forte repressão à oposição.
Para o pesquisador Gamba Torres, compreender a história do AI-2 é fundamental para que a sociedade brasileira reconheça os riscos da erosão institucional e do enfraquecimento democrático. Ele reforça que a defesa da independência dos três Poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — é um pilar essencial para a manutenção de um regime democrático e que a tentativa de desmoralizá-los ou controlá-los por meios autoritários representa uma ameaça constante à liberdade e ao Estado de Direito.
Fonte: Agência Senado