Hoje, dia 28 de maio, se celebra o Dia Nacional de Luta pela Redução da Mortalidade Materna e apesar dos altos números de mortes por Covid-19 — que aumentaram 233% em 2021 em relação à 2020 — o aborto inseguro segue no topo da lista, variando entre terceiro e quarto lugar, segundo Emanuelle Góes, pesquisadora Pós-doc do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia. A OMS define morte materna como aquela decorrente de problemas ligados à gravidez ou por ela agravados, ocorridos no período da gestação ou até 42 dias após o parto.
A razão de morte materna ultrapassa os valores de 50 por 100 mil habitantes no Brasil. Segundo a OMS os números deveriam ser inferiores a 20. Os dados sobre aborto no Brasil são imprecisos mas, como mostra essa reportagem do UOL, segundo a OMS, um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019 e na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura.
Em entrevista à Agência Pública , Emanuelle falou sobre o racismo institucional que mata mulheres negras dentro das maternidades, sobre a criminalização do aborto que incide mesmo sobre as mulheres que têm o direito grantido por lei e sobre a fragilidade das conquistas com relação aos direitos reprodutivos, especialmente sob o governo Bolsonaro.
A partir de sua tese “Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto”, a pesquisadora aponta ainda que, quando chegam ao serviço de saúde em situação de abortamento “as mulheres negras são colocadas em dúvida muito mais do que as mulheres brancas, porque para as mulheres negras esse lugar da maternidade não existe, presume-se que todos os abortos das mulheres negras são abortos provocados, não são espontâneos”. E denuncia o que chama de “tirania do urgente” durante a pandemia de coronavírus: “Há baixa na produção de remédios contraceptivos, baixa na produção de medicamentos para HIV, tuberculose, baixa produção de camisinha. O serviço de pré-natal fecha porta, assim como o serviço de aborto legal. É justo que o profissional de saúde priorize o atendimento de pacientes com Covid. É extremamente importante. Mas vemos todo um desmonte nas outras questões que não deixam de existir”.
A gente sabe que se tem hoje no Brasil uma alta taxa de mortalidade materna e que ela é dividida de maneira desigual, não só pelas regiões do país, mas também por classe, por raça. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso a partir da sua pesquisa, do seu trabalho.
O meu estudo de doutorado é sobre acesso em relação a aborto, sobre as mulheres que precisavam de alguma forma realizar o aborto, mas é claro que pra discutir isso eu também preciso discutir morte materna, considerando que aborto é uma das principais causas, fica ali na terceira, na quarta posição.
O que a gente vai identificar é que as mulheres negras, pretas e pardas, morrem mais de morte materna. Mas, também, se a gente fizer a separação por região, a gente vai ter essa questão territorial. As mulheres negras do norte e do nordeste morrem mais em comparação com outras mulheres negras.
Então, a gente vai ter um adensamento dessa desigualdade quando aciona outras categorias, outros marcadores sociais. Muitos estudos vão mostrar como essa desigualdade ocorre em relação à mortalidade materna e que as mulheres negras morrem na procura do serviço e morrem dentro do hospital, o que também é uma reprodução do racismo institucional.
Os casos emblemáticos que a gente conhece foram dentro dos espaços hospitalares, como o de Alyne Pimentel [primeiro caso sobre morte materna evitável levado a um órgão de direitos humanos do Sistema de Direitos Humanos das Nações Unidas] ou o caso de Rafaela Cristina dos Santos no Rio de Janeiro, uma jovem de 15 que morreu em 2014, se não me engano, dentro da maternidade. Então muito se diz sobre as mulheres que moram na periferia e morrem porque não chegam a tempo ao atendimento e isso é uma realidade. Mas outra realidade é a falta de acesso à instituição. Na instituição as mulheres também morrem porque são mal atendidas, morrem porque o racismo institucional comete esse crime. Acho que poucos ainda questionam essa questão da morte dentro da maternidade, dentro do hospital. Que é também um cenário que a gente precisa colocar no fronte, porque se não superar isso, as mulheres continuarão morrendo.
Se você pudesse falar então um pouco sobre o papel da criminalização do aborto nesse cenário da mortalidade materna no Brasil…
A criminalização do aborto prejudica as mulheres inclusive quando é aborto legal e aborto espontâneo, né? As mulheres são maltratadas no serviço, independente do tipo de aborto. As mulheres que chegam no serviço falando que o aborto é espontâneo, vão ser tratadas como se o aborto fosse provocado, porque sempre parte da prerrogativa de que as mulheres estão mentindo. Isso mesmo quando é de fato espontâneo, ‘ah, é espontâneo mas você não cuidou direito e por isso você abortou’.
A criminalização vai conformando as relações que não fazem parte, em primeira instância, da criminalização. Então, a gente não deveria se preocupar com a criminalização unicamente com o aborto ali provocado que não é permitido por lei. Essa criminalização contamina todo o processo, toda a atenção às mulheres que sofrem violência sexual que precisam procurar o serviço e protelam, por exemplo. Muitas dessas mulheres acabam fazendo um aborto inseguro. Tem um estudo sobre mulheres que teriam direito ao aborto legal mas terminam realizando um aborto inseguro, por conta da criminalização. Porque não é crime na lei, mas é criminalizado na atenção mesmo quando ele é legal.
E a gente vai ter isso de forma mais grave quando são as mulheres negras. Tem um estudo no Rio de Janeiro que mostra que as mulheres negras são as mais criminalizadas pelo profissional de saúde, são as mais denunciadas e acusadas de realizar aborto provocado, mesmo quando afirmam que o aborto foi espontâneo. As mulheres negras são colocadas em dúvida muito mais do que as mulheres brancas, porque para as mulheres negras esse lugar da maternidade não existe, presume-se que todos os abortos das mulheres negras são abortos provocados, não são espontâneos.
E para as mulheres negras existe ainda a dimensão da hipersexualização que está vinculada ao sexo e não à maternidade e como isso impacta no tratamento, no cuidado, na atenção no abortamento. Então a criminalização do aborto tem todas essas camadas que vão dando essa dimensão, para além de permitir ou não permitir, é sobre como a lei contamina tudo o que tem relação com o aborto.
E como é cruel para todas essas mulheres, né? De diferentes maneiras, as que teriam acesso ao aborto legal e não conseguem, as que precisam recorrer a abortos clandestinos, as que sofrem abortos espontâneos e estão sofrendo com sua perda… Todas são destratadas.
As que sofrem aborto espontâneo conseguem mensurar muito mais essa questão da discriminação, do estigma, do mau trato, do que as mulheres que chegam com o aborto provocado. Porque as que fizeram aborto espontâneo não estão lá pra sofrer, vamos dizer assim. E as que provocaram já partem da prerrogativa da culpa, então sofrer até faz parte do processo, sofrer discriminação, ser maltratada. As mulheres que sofrem abortos espontâneos deveriam inclusive ser bem acolhidas porque tiveram a perda de algo que desejavam. E a mulher que tem uma complicação por um aborto provocado, deveria ser acolhida por outra demanda.
Você acredita que durante o governo Bolsonaro isso piorou? Por conta dessa bandeira que eles levantam — o próprio presidente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e a ministra Damares Alves contra o aborto, inclusive o garantido por lei?
Na minha perspectiva a gente tem uma agenda de estagnação e depois de retrocesso. A gente não consegue avançar, a gente chega num patamar da agenda dos direitos reprodutivos que não anda muito.