Toda terça-feira, Denise*, de 9 anos, acorda, pega o celular e começa a estudar online. Este é o único dia da semana que ela tem essa oportunidade porque é o dia de folga da mãe.
O motivo é que a mãe, de 26 anos, é a única da casa que tem um smartphone.
Principal fonte de renda de uma família numerosa, ela disse que não tem condições de comprar um celular, tablet ou computador para a filha estudar nos outros dias da semana.
"Eu até cogitei comprar um telefone para ela, mas eu recebo um salário mínimo e pago quase R$ 200 só de luz. Eu compro o celular ou comida. O celular mais simples não custa menos de R$ 500, fora a internet. Hoje, nossa prioridade é ir no mercado para repor o que precisa", afirmou à BBC News Brasil.
Esse caso ocorre na maior e mais rica cidade do Brasil, mas ilustra o que atinge o país inteiro, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. Mesmo depois de mais de um ano do início da pandemia causada pelo coronavírus, professores de escolas públicas dizem que ainda não há uma estrutura adequada para os alunos aprenderem à distância.
De acordo com um levantamento do Unicef, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância, em novembro de 2020, quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam a escola (remota ou presencialmente) no Brasil. Outros 3,7 milhões de estudantes matriculados não tiveram acesso a atividades escolares e não conseguiram estudar em casa.
No total, 5,1 milhões tinha acesso à educação. Entre essas crianças e adolescentes sem educação, 41% tinham de 6 a 10 anos de idade; 27,8% tinham de 11 a 14 anos; e 31,2% tinham de 15 a 17 anos.
Em São Paulo, 667 mil estudantes de 6 a 17 anos ficaram sem estudar em 2020, o que representa 9,2% das crianças e adolescentes em idade escolar no Estado.
O Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e o Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) avaliaram a eficiência dos planos de educação remota de Estados e capitais.
Os resultados, mensurados entre março e outubro de 2020, mostram um cenário bem ruim: a nota média dos planos estaduais no Índice de Educação à Distância foi de 2,38 (de 0 a 10) e de 1,6 para os das capitais.
O estudo da FGV também apontou que faltou uma supervisão para verificar se os alunos estavam de fato acompanhando as aulas e houve pouca oferta de formas de acesso, dando aparelhos ou a conexão de internet para que os estudantes conseguissem assistir às aulas online.
"A quase totalidade dos Estados decidiu pela transmissão via internet, (mas) apenas cerca de 15% deles distribuíram dispositivos e menos de 10% subsidiaram o acesso à internet", escrevem os pesquisadores Lorena Barberia, Luiz Cantarelli e Pedro Schmalz.
A maioria dos planos falhou em oferecer estratégias de interação com professores, e também de supervisão e estímulo à presença, concluiu o estudo.
"Este é um elemento crucial para políticas de ensino remoto, por permitir interações que considerem as necessidades e dificuldades específicas de cada aluno, sobretudo em um contexto de elevadas taxas de abandono escolar."
A presidente do Sindicato dos Educadores da Infância (Sedin), Claudete Alves, disse que a Prefeitura de São Paulo não distribuiu o material necessário para que alunos e professores pudessem ter aulas à distância. Ela disse que até foram enviados tablets para escolas, mas quase nenhum foi entregue porque estão sem chip.
"Houve situações de que o material chegou na escola, mas não foi destinado aos alunos. Fora os educadores que foram colocados do dia para a noite para atuar numa modalidade que eles nunca tinham trabalhado, sem nenhum preparo. Também não foi disponibilizado a eles internet ou equipamento para que pudessem ministrar as aulas em casa", afirmou.
Os professores municipais estão em greve por tempo indeterminado. A presidente do Sedin disse que os servidores não voltarão enquanto se sentirem completamente seguros e vacinados. Hoje, apenas professores com mais de 47 anos podem receber o imunizante.
"Apesar de toda a pressão e medo de ter o salário descontado, vamos manter (a greve). Os (professores) que voltaram estão numa situação de insegurança absurda, trabalhando com medo. Os pais também não estão mandando os filhos. Hoje, vi a frequência de três escolas com capacidade para cerca de 500 alunos, mas a mais cheia tinha só nove estudantes. As pessoas sabem que vivemos o pior momento da pandemia", disse.
A sindicalista Claudete Alves, que já foi vereadora em São Paulo por dois mandatos, também faz críticas ao modelo de concessão de parte do ensino municipal.
"É transferir a responsabilidade de atendimento público para organizações sociais. Apesar de termos ilhas de excelência com grande qualidade, a grande maioria está sob investigação do Ministério Público. Hoje, qualquer puxadinho com quarto e cozinha nas periferias se transformou em educação infantil. Também é necessário entender que o aluno do Butantã tem necessidades diferentes do que vive na Cidade Tiradentes e que são necessárias ações mais focadas para reconhecer essas diferenças sociais."
A Prefeitura de São Paulo comprou, em agosto de 2020, 465 mil tablets para distribuir aos alunos mais pobres. A promessa é de que todos sejam entregues até o fim de 2021, mas até agora menos de 70 mil estudantes receberam os equipamentos.
Segundo a Secretaria Municipal da Educação, a distribuição prioriza os 10% de alunos que tiveram menos acesso à internet em 2020. Os próximos a receber serão os cerca de 20% de alunos que tiveram baixa conectividade com a plataforma de ensino e quem teve pior desempenho na avaliação feita com os estudantes até o fim do ano passado.
A estudante Denise, que faz aula apenas uma vez por semana, está no 5º período e estuda em uma escola municipal no extremo leste da capital paulista. A mãe conta que não foi procurada e nem soube que a escola poderia doar tablets ou chips para alunos de baixa renda.
"Ela perdeu o ano de 2020 e já perdeu metade deste também. Ela passou de ano, mas basicamente sem aprender nada. Eu não mandei ela para fazer aula presencial por conta do medo da pandemia, que está muito grave. Na minha família houve casos e não tenho segurança em mandar. Aqui estamos tomando todos os cuidados, mas e na casa do amigo?", afirmou a mãe.
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