21/12/2025 18:51:09

Geral
21/12/2025 17:00:00

Descobertas arqueológicas revelam a complexidade do território do Quilombo de Palmares

Pesquisa inédita aponta novos locais de resistência e amplia compreensão sobre a história do maior quilombo da América Latina

Descobertas arqueológicas revelam a complexidade do território do Quilombo de Palmares

Uma investigação arqueológica recente lança nova luz sobre a extensão e a organização do antigo Quilombo de Palmares, símbolo máximo da resistência negra no Brasil.

Por meio de evidências de cultura material encontradas em contexto de luta por liberdade, essa descoberta marca a primeira vez que tais registros são identificados no principal quilombo da América Latina.

A Serra da Barriga, situada na cidade de União dos Palmares, na Zona da Mata de Alagoas, representa um dos ícones mais emblemáticos da história brasileira. Reconhecida como Patrimônio Cultural desde 1986, e inscrita nos registros históricos, arqueológicos, etnográficos e paisagísticos, a área foi agraciada em 2017 com o título de Patrimônio Cultural do Mercosul. Essa homenagem reafirma sua importância como núcleo da resistência negra, por ter abrigado o lendário Quilombo dos Palmares, maior espaço de liberdade durante o período colonial na América Latina.

No entanto, uma descoberta recente tem potencial de transformar o que se sabe sobre esse vasto território. Levy Pereira, cartógrafo especializado em história, localizou na biblioteca da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, um mapa inédito que amplia a compreensão sobre a ocupação quilombola. Trata-se de uma versão manuscrita do documento intitulado Brasilia Qua Parte Paret Belgis, que retrata a porção do Brasil sob domínio neerlandês no século XVII, elaborado pelo matemático e naturalista George Marcgraf. O mapa apresenta nove desenhos das capitanias da época, datando do período em que os holandeses controlavam regiões do Nordeste brasileiro.

Inspirados por essa descoberta, pesquisadores do Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em colaboração com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), formaram uma equipe multidisciplinar para aprofundar as investigações sobre esse território histórico.

Pesquisas aprofundadas

De acordo com Flávio Moraes, arqueólogo e professor do curso de História na Ufal, a maior parte dos estudos anteriores sobre a Serra da Barriga e os Quilombos de Palmares era limitada à sua área geográfica. Ele explica que há indicações de que Palmares era muito mais extenso do que se pensava: “Historicamente, há evidências de que a Serra da Barriga foi um ponto central, mas o quilombo não se restringia a ela. Tratava-se de uma área extensa, com vários mocambos dispersos na região”, detalha o docente.

Com o documento recém-descoberto, as pesquisas avançaram na identificação de novos sítios arqueológicos. A equipe utilizou relatos de cronistas holandeses, que descreviam diferentes núcleos habitacionais denominados “Velho Palmares”, “Outro Palmares” e “Palmares Grande”, abrangendo áreas de Alagoas e Pernambuco. Moraes explica que a equipe cruzou referências geográficas indicadas pelos relatos históricos com medidas convertidas de unidades antigas para quilômetros e metros. Ao sobrepor mapas antigos a imagens de satélite modernas, foi possível delimitar três áreas consideradas “sensíveis”, onde acredita-se que estavam as comunidades de mocambos.

Essa descoberta não apenas mapeia novos locais, mas também confirma que Palmares era uma rede intricada e extensa de assentamentos que resistiram às tentativas do sistema colonial por décadas. “Durante as visitas de reconhecimento, detectamos marcas na superfície do solo, como fossos e paliçadas, que parecem ter sido construídas com a finalidade de proteção. Essas evidências, que serão confirmadas por escavações em janeiro, indicam que esses grupos estavam constantemente ameaçados e precisaram criar estratégias de defesa”, relata Moraes.

Início de uma nova narrativa histórica

A Fundação Cultural Palmares (FCP), responsável pela preservação da memória afro-brasileira, apoia de forma decisiva as escavações. No último dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, autoridades se reuniram na Serra para oficializar o compromisso de pesquisa com a assinatura de um Termo de Execução Descentralizado (TED), que destinou R$ 300 mil para o projeto.

Para Moraes, essa ação reforça o papel da pesquisa em resgatar histórias apagadas e valorizar a cultura negra. “O 20 de novembro, símbolo do movimento negro e das comunidades de terreiro, foi escolhido por ter um peso simbólico forte. Nosso objetivo é promover uma verdadeira mudança na forma como esse período é narrado, trazendo à tona aspectos até então negligenciados”, afirma.

O projeto tem duração de 18 meses, iniciando em janeiro de 2026, período durante o qual a equipe buscará por vestígios materiais que não estejam registrados nos documentos históricos. Moraes destaca que, embora saibamos sobre a repressão, pouco se conhece sobre o cotidiano, os rituais e as manifestações culturais dessas comunidades. “Queremos iluminar esse universo por meio de objetos que evidenciem a permanência e a produção de conhecimentos na sociedade do Palmares”, comenta.

Segundo ele, a narrativa oficial frequentemente associa os povos negros ao atraso, focando apenas na escravidão e nas práticas de violência, enquanto os espaços de autonomia, rituais e avanços tecnológicos nos quilombos permanecem invisibilizados. “A arqueologia tem o papel crucial de combater essa omissão, dando voz aos moradores de Palmares e destacando sua importância como símbolo de resistência e busca por liberdade, não apenas no Brasil, mas também nas Américas”, reforça Moraes.

Integram a equipe de pesquisa arqueólogos como Onésimo Santos e Daniel Ferreira, além do cartógrafo Levy Pereira. Também fazem parte historiadores como Bruno Miranda (UFRPE), Felipe Damasceno, Danilo Marques e Zezito Araújo. Vágner Bijagó, antropólogo do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/Ufal – Campus Sertão), e o profissional de audiovisual Leandro Pereira contribuem, assim como estudantes, que terão papel fundamental na formação acadêmica do projeto.

Reconhecimento internacional e o avanço do conhecimento na região

A iniciativa tem conquistado atenção global, com veículos de imprensa nacionais e internacionais destacando sua relevância e inovação. Moraes comenta que recentes entrevistas em mídias estrangeiras, incluindo uma reportagem na mídia alternativa alemã que divulga grandes escavações arqueológicas ao redor do mundo, evidenciam o reconhecimento internacional do projeto. “Isso demonstra o impacto do nosso trabalho e sua importância para o campo da arqueologia”, diz.

Para Moraes, a pesquisa eleva o papel da Universidade Federal de Alagoas ao colocar a instituição em destaque na produção de conhecimento e extensão. Ele reforça que a expansão das Instituições de Ensino Superior (IES) para o interior do país é fundamental. “Sou professor no Campus do Sertão, e essa iniciativa prova que o desenvolvimento acadêmico também acontece fora das capitais. O único núcleo de arqueologia da Ufal está aqui, no Sertão, e é preciso valorizar essa presença”, afirma.

Com planos para o futuro, Moraes aponta que a integração entre escuta comunitária e os estudos arqueológicos pode ampliar a compreensão social sobre as vivências do povo negro. “Nosso compromisso é dialogar continuamente com as comunidades de terreiro e a Fundação Palmares, evitando práticas coloniais que marginalizaram esses povos por muito tempo. A arqueologia é uma ciência coletiva, e os méritos devam ser compartilhados com as comunidades envolvidas”, conclui Moraes.