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09/12/2025 06:00:00

Seu psicólogo pode estar usando IA para registrar sessões de terapia: quais os riscos dessa prática?

Seu psicólogo pode estar usando IA para registrar sessões de terapia: quais os riscos dessa prática?

Fazer terapia diretamente com um chatbot costuma ser desaconselhado por diversos especialistas, mas uma nova discussão vem ganhando espaço: o uso de inteligência artificial generativa por psicólogos humanos para auxiliar em tarefas do consultório, desde transcrições de sessões até sugestões técnicas de abordagem. Plataformas como PsicoAI e PsiDigital passaram a oferecer serviços que prometem automatizar anotações, organizar informações clínicas, sugerir intervenções e até supervisionar casos de acordo com teorias consagradas da psicologia. A propaganda de uma dessas ferramentas chega a questionar se o profissional ainda perde tempo redigindo resumos após cada atendimento.

As empresas afirmam que a tecnologia não substitui o terapeuta, apenas facilita processos internos. Entre os 50 psicólogos procurados pela BBC News Brasil nas redes sociais, dez confirmaram usar algum tipo de IA no trabalho, geralmente para transcrever sessões ou produzir resumos. O uso da tecnologia não é proibido pelo Conselho Federal de Psicologia, que reconhece a presença crescente desses recursos no cotidiano, embora ressalte que cabe ao profissional avaliar riscos e limites éticos.

A psicóloga Maísa Brum, especializada em avaliação neuropsicológica, incorporou um gravador com IA ao seu trabalho para transcrever entrevistas longas e organizar a linha do tempo dos relatos dos pacientes, ferramenta útil para a elaboração de laudos técnicos. Antes disso, ela descobriu que um estagiário terceirizado utilizava o ChatGPT para escrever textos de forma padronizada e pouco humanizada. Hoje, Maísa utiliza a tecnologia como apoio, revisa tudo manualmente e só grava as entrevistas com consentimento formal, apagando os arquivos posteriormente para evitar riscos de armazenamento. Ela afirma que sua maior preocupação é que profissionais usem IA para substituir o raciocínio clínico.

O psicólogo e pesquisador Eduardo Araújo utiliza a tecnologia em contextos acadêmicos, especialmente para analisar tabelas com centenas de pacientes de maneira mais ágil. Em seu mestrado, recorreu ao ChatGPT para interpretar dados anonimizados de crianças e adolescentes com experiências traumáticas. Araújo defende cautela em ferramentas que fazem promessas diagnósticas, pois, segundo ele, a IA pode gerar respostas com gravidade distorcida em relação à observação clínica.

A psicóloga Patrícia Mourão De Biase afirma que se aproximou da IA por curiosidade diante da grande difusão do tema. Ela acredita que desde a pandemia a categoria ficou mais aberta ao uso de novas tecnologias e hoje emprega IA para agilizar tarefas burocráticas e criar enquetes ou atividades complementares para os pacientes. Patrícia diz que alguns colegas utilizam as ferramentas até para refletir sobre casos, pedindo à IA sugestões de caminhos após as sessões. Embora não faça isso rotineiramente, considera que a tecnologia oferece possibilidades e não representa ameaça à profissão, desde que usada com reflexão e consentimento dos pacientes.

O psiquiatra e psicoterapeuta Rodrigo Martins Leite, do Centro de Saúde da Comunidade da Unicamp, alerta que o uso de IA em psicologia é uma realidade pouco debatida e que pode gerar confusões sobre o papel do terapeuta quando a ferramenta ultrapassa o campo administrativo e começa a influenciar análises clínicas. Ele destaca preocupações éticas e jurídicas, especialmente relacionadas à confidencialidade e ao risco de violação da Lei Geral de Proteção de Dados, já que muitas IAs não fazem anonimização automática das informações. Para Leite, é necessário desmistificar a inteligência artificial, lembrando que ela não é um saber superior, mas sim um mecanismo que reproduz dados disponíveis, incluindo informações equivocadas.

Entre os aspectos positivos, o psiquiatra cita que a tecnologia pode organizar ideias, estimular criatividade e auxiliar na preparação de materiais terapêuticos. No entanto, afirma que nada disso substitui a supervisão humana, base da formação profissional na área. Ele ressalta ainda a diferença entre ritmo terapêutico e velocidade das respostas da IA, alertando que a rapidez pode criar uma falsa sensação de clareza em situações que, na prática clínica, exigem tempo, dúvida e elaboração gradual. Segundo Leite, a IA pode diminuir a tolerância do terapeuta ao não saber, uma etapa natural do processo de reflexão clínica, e reforça que o consentimento explícito do paciente é indispensável.

A plataforma Psidigital, uma das empresas citadas, oferece um assistente virtual que acompanha sessões, registra automaticamente o que foi dito e gera relatórios estruturados com sugestões de intervenção baseadas em diferentes abordagens teóricas. Seu criador, Gustavo Landgraf, conta que a ideia surgiu a partir da rotina de sua esposa, psicanalista, e que inicialmente o software funcionava apenas como sistema de gestão. A incorporação de IA veio depois, com a proposta de facilitar as anotações dos profissionais. Para reduzir receios, a plataforma passou a apagar automaticamente gravações e transcrições ao término de cada sessão, mantendo apenas resumos. Landgraf afirma que a ferramenta utiliza criptografia, senha dupla e incentiva que pacientes sejam registrados com nomes genéricos. Segundo ele, alguns profissionais atendem muitos pacientes por dia e acumulavam resumos para o fim de semana, o que teria sido resolvido com o automatismo da ferramenta.

Ele argumenta que usar a Psidigital é mais seguro do que recorrer a IAs genéricas como o ChatGPT, porque estas podem utilizar dados gratuitos para treinar seus modelos. Ressalta que sua plataforma não substitui o terapeuta, já que não interpreta expressões faciais, linguagem corporal ou nuances emocionais, e que sua função é apenas organizar o material da sessão e sugerir questões para encontros futuros.

A conselheira do Conselho Federal de Psicologia, Carolina Roseiro, afirma que o CFP acompanha as mudanças tecnológicas desde três anos atrás e que as orientações precisam ser flexíveis diante da velocidade da evolução digital. Ela destaca que a IA tem limitações, não é neutra e pode reproduzir vieses discriminatórios, já que depende de programações e bases de dados. A diretriz central do conselho, segundo ela, é que o psicólogo é integralmente responsável por tudo o que a tecnologia entregar sob seu comando. Carolina reforça que a IA não compreende o contexto clínico por si só e não substitui mediação humana. Ela afirma ainda que o CFP prepara duas cartilhas, uma para profissionais e outra para o público, com orientações específicas. Para ela, o consentimento escrito do paciente é essencial, abrangendo não só gravações, mas qualquer uso de IA no processo terapêutico. Caso a ferramenta não garanta sigilo, o profissional pode ser responsabilizado por quebra de confidencialidade.