Após mais de duas décadas de atuação no Banco Central, incluindo a chefia do time responsável pelo desenvolvimento do sistema de pagamentos instantâneos Pix, Carlos Eduardo Brandt decidiu, há três meses, deixar o órgão e seguir para uma nova etapa na sua trajetória profissional, desta vez em Washington.
Brandt trocou o Brasil pelos Estados Unidos para integrar uma equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma organização global que reúne 191 países e que desempenha papel importante na assistência técnica e na cooperação financeira internacional.
A ligação de Brandt com o Banco Central é de família: seu pai e avô também trabalharam na autarquia criada em 1964. No entanto, durante seu período na instituição, o BC assumiu uma relevância sem precedent, sobretudo pelo sucesso do Pix, que completou cinco anos neste domingo, 16 de novembro.
O sistema de pagamentos instantâneos brasileiro é apontado internacionalmente como referência no segmento. Em 2021, Brandt foi o único brasileiro incluído na lista da Bloomberg das 50 figuras que mais influenciaram os negócios globais naquele ano, logo após o primeiro aniversário do Pix, que na ocasião tinha sua base de usuários mais que dobrada, passando de 56 milhões para 113 milhões de pessoas.
Desde então, a plataforma se consolidou como um ícone do ecossistema digital financeiro do Brasil, sendo utilizado por 161,7 milhões de pessoas físicas e 16,3 milhões de empresas. Segundo um estudo da fintech Ebanx com dados públicos, a quantidade de transações feitas via Pix chegou a R$ 85 trilhões, valor equivalente a sete vezes o Produto Interno Bruto do país.
De acordo com a análise, o sistema de pagamento já supera a popularidade do cartão de crédito, sendo utilizado por 93% da população adulta brasileira. Estima-se que, até o final deste ano, o Pix realize cerca de 7,9 bilhões de operações mensais, movimentando aproximadamente R$ 35,3 trilhões ao ano, o que representa um crescimento de 34% em relação a 2024.
Esses números, que evidenciam o impacto revolucionário do Pix e a inovação brasileira na área financeira, levaram o FMI a convidar Brandt para atuar na divisão de pagamentos e infraestrutura de mercados, cargo que ele ocupa desde agosto. Sua missão é colaborar para a implementação de soluções semelhantes em outros países, facilitando transações internacionais de forma mais rápida e acessível.
Para tanto, ele acompanha iniciativas como a interligação financeira dos 16 países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e o projeto Nexus do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS), que visa conectar sistemas de pagamento de diferentes nações e promover transações instantâneas entre elas. O Nexus, atualmente em fase inicial em cinco países asiáticos — Índia, Malásia, Filipinas, Singapura e Tailândia — é conhecido como o “Pix internacional”.
Brandt explica que o objetivo dessas ações é apoiar a agenda de pagamentos internacionais, simplificando procedimentos que hoje envolvem operações com moedas distintas e regulamentações variadas, além de questões de segurança. Ele ressalta que, apesar das diferenças legais, os padrões internacionais também devem ser seguidos, tornando esse processo mais complexo.
Entre as iniciativas que ele monitora estão também o desenvolvimento de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs), que estão sendo criadas em diversos países com tecnologia semelhante às criptomoedas, com a promessa de tornar as transações financeiras ainda mais simples e eficientes.
As experiências brasileiras, como o Pix, tiveram impacto global, sendo consideradas referências para outros sistemas similares ao redor do mundo. Segundo Tobias Adrian, diretor do departamento de mercados monetários e de capitais do FMI, as CBDCs poderiam diminuir o custo das remessas internacionais, que atualmente representam uma taxa média de 6,5% do valor enviado, beneficiando especialmente as populações mais pobres.
Brandt observa que a evolução do sistema de pagamentos no Brasil, desenvolvido e operado pelo Banco Central — uma entidade de natureza regulatória e sem fins lucrativos — diferencia-se de modelos adotados por países como a Índia, onde empresas privadas e multinacionais têm maior protagonismo na gestão dessas plataformas.
Ele reforça que a estratégia brasileira visa fortalecer o mercado interno e garantir autonomia nacional, princípios que estiveram na base do projeto desde sua concepção. Para Brandt, a participação do Banco Central como orquestrador do sistema é fundamental para criar uma infraestrutura digital pública, que deve ser de acesso universal e não controlada por interesses privados.
Essa lógica de infraestrutura digital pública, que visa democratizar o acesso às soluções tecnológicas, é apoiada por iniciativas internacionais, como a campanha da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2023, que incentiva a adoção de plataformas semelhantes em diversos países, incluindo o Brasil, que já compartilhou experiências bem-sucedidas, como a emissão da nova carteira de identidade nacional (CIN) integrada ao portal gov.br e a Rede Nacional de Dados em Saúde.
Brandt afirma que o Pix representa uma infraestrutura de interesse público imprescindível, que não deve depender de interesses privados. Ele também comenta que a experiência brasileira é uma referência mundial, embora outros países também estejam apostando na implementação de infraestruturas públicas digitais semelhantes.
Por outro lado, a iniciativa brasileira tem sido alvo de críticas por parte do governo dos Estados Unidos. Em julho, o Pix foi incluído na lista de temas sob investigação pelo Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR), sob alegação de prática comercial desleal, principalmente pelo impacto que tem no mercado de grandes empresas de tecnologia (big techs), que perdem receita devido à sua estrutura aberta e inclusiva.
Questionado por nossa reportagem, Brandt evita polemicas e defende o caráter “ganha-ganha” das infraestruturas públicas digitais. Segundo ele, essa abordagem favorece a digitalização ampla da economia, criando oportunidades de negócio para as empresas de tecnologia e promovendo uma integração maior entre os setores.
Ele também argumenta que cada país tem sua própria avaliação sobre o sistema de pagamentos e que o Banco Central do Brasil agiu com convicção, sempre orientado por objetivos públicos que beneficiam a sociedade brasileira.
O sistema de inovação financeira brasileiro, liderado pelo Pix, é considerado um “laboratório global” na área de finanças digitais. Um estudo do fundo de investimento Valor Capital Group aponta que o Brasil exemplifica como uma infraestrutura digital coordenada e inclusiva pode acelerar o progresso, tornando-se uma referência internacional.
Entre outras iniciativas de destaque, estão o Open Finance, que facilita o compartilhamento seguro de dados financeiros entre diferentes instituições, e o sistema de identificação digital do governo federal, o gov.br, que reforçam o papel do Brasil como palco de avanços nesta área.
Apesar do reconhecimento internacional, a experiência brasileira também suscita preocupações, especialmente quanto à concentração de poder em empresas multinacionais, como os exemplos do sistema indiano UPI, que acabou concentrando a gestão nas mãos de gigantes como Google e Walmart.
Brandt reforça que o modelo brasileiro, ao contrário, promove a autonomia do mercado doméstico e prioriza a soberania nacional, objetivos que estavam claros desde o início do projeto do Pix.
Para ele, a ideia de uma infraestrutura digital de interesse público deve prevalecer, sustentada pelo conceito de “infraestrutura pública digital”, que garante que soluções essenciais à economia digital sejam de domínio do setor público, evitando concentração que comprometa a inclusão e o acesso universal.
Essa visão tem ganhado adesão internacional, com a ONU promovendo a adoção de plataformas públicas de tecnologia em diferentes regiões. Recentemente, essa estratégia foi criticada pelo governo americano, que manifestou preocupação com o impacto do Pix nas grandes empresas de tecnologia, alegando que a ferramenta poderia prejudicar interesses comerciais.
Apesar disso, Brandt defende que as infraestruturas digitais públicas representam uma oportunidade de desenvolvimento sustentável, beneficiando toda a sociedade e fortalecendo a soberania do país. Além disso, afirma que a experiência brasileira mostra que é possível criar sistemas eficientes e inclusivos, que tornam o Brasil referência internacional nesse segmento.