Se os residentes do Brasil reduzissem seu consumo diário de uma bebida alcoólica, equivalente a uma lata de cerveja de 330 ml (aproximadamente 12 gramas de álcool), uma quantidade próxima a 157,4 mil óbitos relacionados a diversos tipos de câncer poderiam ser evitados ao longo dos próximos 25 anos.
Segundo um relatório elaborado a partir de uma nova plataforma digital lançada recentemente pela Vital Strategies, organização global de saúde pública que atua com inteligência de dados e políticas baseadas em evidências, essa ferramenta serve de exemplo para outros países adotarem estratégias similares.
A plataforma integra dados sobre a relação entre o consumo de álcool e o risco de morte por várias formas de câncer, além de informações sobre os hábitos de consumo na população. Estima-se que, até 2050, das 11 a 14 milhões de mortes provocadas por câncer, mais de 415 mil poderão estar associadas ao uso de bebidas alcoólicas, incluindo tumores no esôfago, cólon e reto, boca, laringe, faringe, mama e fígado. De acordo com a médica Mary-Ann Etiebet, CEO e líder da Vital Strategies, doenças ligadas ao álcool podem ser evitadas por meio de políticas públicas eficazes, semelhantes às campanhas de combate ao tabagismo.
Ela destacou: "No Brasil, conseguimos diminuir em 74% o consumo de cigarros desde 1989 com diversas ações, reformas legais, regulamentações e campanhas educativas, o que também levou à redução da incidência de câncer de pulmão. Sabemos que essas políticas funcionam e como implementá-las." Natural da Nigéria e com cidadania norte-americana, a especialista iniciou sua trajetória em programas de HIV/AIDS em seu país natal e posteriormente liderou iniciativas no setor farmacêutico da Merck, focadas em cuidados maternos.
Ela aponta que países como Finlândia, Dinamarca, Lituânia e Sérvia adotam políticas de controle de álcool mais avançadas, que podem ser reforçadas por ações governamentais, educação e maior conscientização pública. No Brasil, metade da população adulta consome bebidas alcoólicas, e o tema está incluso na primeira fase da reforma tributária, que criou o imposto seletivo, aumentando as taxas sobre produtos prejudiciais à saúde, com o objetivo de desestimular o consumo. Ela também comentou que, diante do corte nos recursos destinados à saúde global, muitos países, especialmente na África, têm visto nas receitas geradas por taxas sobre álcool uma solução para fortalecer os serviços públicos.
A Organização Mundial da Saúde recomenda que os países acelerem suas ações para reduzir o consumo de álcool em 20% até 2030. Além do câncer, outras 24 patologias estão ligadas ao uso de bebidas alcoólicas, como cirrose, doenças hepáticas, epilepsia, hipertensão, hemorragia cerebral e problemas cardíacos, além de acidentes de trânsito e violências. Para Mary-Ann, a plataforma tem como objetivo facilitar a compreensão dos dados de modo que eles tenham impacto na vida cotidiana, uma vez que muitas pessoas ainda não conectam o consumo de álcool ao risco de desenvolver câncer.
Ela explica: "Muitos perdem dias de trabalho por cuidar de familiares com câncer ou deixam de trabalhar por causa do álcool. Essas perdas afetam a produtividade, a renda e o crescimento econômico." No Brasil, o tratamento do câncer consumiu R$ 3,9 bilhões do Sistema Único de Saúde em 2022, valor que equivale a aproximadamente US$ 722 milhões, sem incluir gastos privados. Estima-se que esse custo aumente em 68% nos próximos 20 anos devido ao crescimento de quase um milhão de novos casos até 2040.
Dados indicam que metade das mortes por câncer podem estar relacionadas a fatores de risco modificáveis, como alimentação ultraprocessada, consumo de açúcar, tabagismo, poluição, sedentarismo e o uso do álcool.
Diante das declarações recentes da OMS, alertando para a influência de indústrias de tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados na implementação de políticas de saúde, a médica enfatiza a necessidade de vigilância contínua nesses setores. Ela critica a interferência dessas indústrias, que trazem informações enganosas e desinformação, prejudicando regulações essenciais.
Além disso, ela afirma que uma estratégia adotada por essas empresas é convencer as pessoas de que as escolhas ruins relacionadas à saúde são responsabilidade exclusiva delas. "Se você é obeso, é porque não tem disciplina, mas, na realidade, viver em um ambiente sem opções saudáveis limita suas possibilidades de decisão", conclui.