Pela primeira vez, cientistas encontraram uma evidência direta de que infecções respiratórias comuns, como gripe e covid-19, podem reativar células cancerígenas adormecidas, especialmente em pacientes que já passaram por tratamento contra o câncer de mama. Essas células, chamadas de metastáticas dormentes, se espalham para órgãos como os pulmões e podem dar origem a novos tumores. A descoberta foi publicada na revista Nature por pesquisadores do Centro Médico Montefiore Einstein (MECCC), da Universidade do Colorado e da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos.
De acordo com Julio Aguirre-Ghiso, diretor do Instituto de Dormência do Câncer do MECCC e colíder do estudo, os resultados reforçam a necessidade de medidas preventivas, como a vacinação contra vírus respiratórios, principalmente entre pacientes oncológicos em remissão. Embora a maior parte dos experimentos tenha sido realizada em camundongos, a análise de bancos de dados com informações de pacientes humanos reforça a hipótese levantada pelos cientistas.
Nos testes laboratoriais, camundongos com câncer de mama metastático foram expostos ao coronavírus Sars-CoV-2 e ao vírus da gripe (influenza). Poucos dias após a infecção, observou-se uma reativação significativa das células cancerígenas nos pulmões e, em duas semanas, surgiram novos tumores. Os pesquisadores identificaram a interleucina-6 (IL-6) como a principal responsável por esse processo: essa proteína, liberada pelo sistema imunológico em resposta a infecções, em excesso, desencadeia uma inflamação que pode “acordar” células malignas dormentes.
O oncologista Márcio Almeida, de Brasília, destacou que medicamentos capazes de bloquear a ação da IL-6, como o tocilizumabe — já utilizado no tratamento da covid-19 e de doenças autoimunes — impediram a reativação tumoral em testes com animais. No entanto, ele ressalta que ainda são necessários mais estudos para confirmar a segurança e a eficácia desse tipo de abordagem em humanos.
Além dos testes laboratoriais, os pesquisadores analisaram dados do UK Biobank, banco de dados britânico com informações de 500 mil pacientes diagnosticados com câncer e outras doenças antes da pandemia. Focando em pacientes com diagnóstico de câncer há mais de cinco anos, os cientistas observaram que aqueles que contraíram covid-19 apresentaram quase o dobro do risco de morrer por câncer, em comparação aos que não foram infectados, mesmo após serem excluídos da amostra os casos em que a causa da morte foi a própria covid. O risco foi maior no primeiro ano após a infecção.
Fernanda Madasi, médica oncologista da Oncologia D’Or, afirmou que ainda não há comprovação definitiva de que infecções respiratórias causem metástase em humanos, mas reconhece a importância do estudo para levantar hipóteses e aprofundar o entendimento sobre o comportamento das células tumorais. “Estudos como esse são fundamentais para entendermos como funciona a dormência e a reativação das células cancerígenas”, explicou.
Ela também ressaltou que, embora não haja implicações clínicas imediatas, o estudo serve como um alerta para reforçar a importância da imunização. “A vacinação contra gripe, covid e pneumonia é uma ferramenta essencial para proteger a saúde de pacientes oncológicos, mesmo daqueles em remissão”, disse.
Outro levantamento foi feito com dados de 280 clínicas oncológicas nos Estados Unidos, analisando mulheres com câncer de mama. Em um período de cerca de 52 meses, as pacientes que tiveram covid-19 apresentaram quase 50% mais chance de desenvolver metástase pulmonar do que aquelas que não foram infectadas.
O oncologista Eduardo Vissotto, do Hospital Sírio-Libanês, acredita que, embora a pesquisa não altere imediatamente a conduta clínica, ela reforça a importância da vacinação como forma de prevenção para esse grupo de pacientes. Segundo ele, ainda não há evidências suficientes para justificar o uso de medicamentos específicos após infecções virais em pacientes com câncer de mama, mas o estudo abre caminho para futuras estratégias preventivas.
James DeGregori, pesquisador do Centro de Câncer da Universidade do Colorado e um dos autores do trabalho, concluiu que a pesquisa reforça a necessidade de compreender os efeitos de longo prazo das infecções virais. “Esses vírus respiratórios continuarão fazendo parte da nossa realidade, e precisamos entender como eles impactam a saúde dos sobreviventes de câncer”, afirmou.