Enquanto autoridades, profissionais de saúde e cientistas no Brasil e no mundo estão se esforçando para combater a COVID-19 e seus efeitos, uma outra ameaça tem se espalhado principalmente por meio de redes sociais: a desinformação.
Uma análise produzida pela União Pró-Vacina, projeto desenvolvido por instituições de pesquisa e acadêmicas da USP Ribeirão Preto, mostra que grupos tradicionalmente conhecidos por disseminarem informações falsas sobre vacinas agora estão mudando o alvo e concentrando-se na doença causada pelo novo coronavírus.
Os métodos da desinformação continuam os mesmos: distorcer conteúdo científico e jornalístico, espalhar teorias da conspiração e até oferecer falsas curas usando produtos conhecidamente tóxicos para a saúde humana. Entre as publicações, há insinuações de que o vírus seria uma ferramenta para instituir uma nova ordem mundial ou mesmo uma arma produzida pela China. Outras afirmam que a vacina da gripe seria a responsável pela disseminação da COVID-19 e que a doença seria facilmente curada por meio da frequência do cobre ou de zappers, supostos antibióticos eletrônicos.
A União Pró-Vacina analisou 213 postagens feitas entre 15 e 21 de março nos dois maiores grupos públicos brasileiros de conteúdo antivacina no Facebook, O Lado Obscuro das Vacinas e Vacinas: O Maior Crime da História, que atuam há 5 e 2 anos, respectivamente.
Em média, os grupos produzem 30 publicações por dia, mas o ritmo mostrou um crescimento no período analisado. O pico chegou a 43 postagens no dia 21 de março. Embora os dois grupos reúnam mais de 20 mil membros, apenas 58 foram responsáveis por todas as publicações nesse período. Dois desses integrantes fizeram mais de 40% das postagens, um total de 87 em sete dias.
Conteúdo e engajamento
Embora os grupos se concentrem basicamente na negação de evidências científicas sobre os benefícios da vacinação, durante os sete dias da análise houve um impressionante crescimento das publicações que abordavam a COVID-19. No total, foram 139 postagens com essa temática (65,3%). Esse período praticamente coincide com o aumento de buscas de informações sobre a doença, segundo relatório do próprio Google.
Mais de 90% das publicações compartilham links (33,8%), vídeos (33,3%) e imagens (23,9%), itens que também podem ser facilmente disseminados em outras plataformas de redes sociais, aumentando o alcance de informações falsas.
O conteúdo das postagens é preocupante: 78,4% apresentam sérios problemas, como a disseminação de teorias da conspiração, utilização de informações falsas e de afirmações sem evidências, a distorção de informações confiáveis, a sugestão de uso e até a comercialização de produtos e tratamentos que não possuem comprovação científica ou aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Além do material compartilhado, o levantamento avaliou os comentários que acompanham as publicações nos grupos. Essa abordagem foi escolhida porque, na maioria dos casos, mesmo quando o conteúdo da postagem era verídico, esse espaço era usado para distorcer ou desacreditar as fontes e os dados, gerando uma nova interpretação deturpada para o conteúdo original.
O resultado é alarmante. Enquanto a média geral de interações (reações, comentários e compartilhamentos por postagem) das demais publicações no período avaliado foi de 16, esse número dobra nas publicações equivocadas sobre o novo coronavírus, chegando a 32. Esses conteúdos tiveram no total 1891 reações, 1011 comentários e 617 compartilhamentos.
A postagem com maior envolvimento (204 interações) aborda o uso de uma substância conhecida como MMS na cura da COVID-19. A sigla vem de Mineral Miracle Solution, ou solução mineral milagrosa, em português. O produto é composto por dióxido de cloro e é semelhante à água sanitária usada como alvejante. Sua ingestão ou administração pelo reto pode causar lesões no intestino, vômito, diarreia, desidratação, insuficiência renal, anemia, entre outros problemas de saúde graves.
A ação desses grupos é um dos fatores que estão impactando negativamente campanhas de imunização em todo o mundo. No Brasil, por exemplo, em 2019, o país não conseguiu bater a meta de vacinar 95% do público-alvo em nenhuma das 15 vacinas do calendário anual. Foi a primeira vez em 25 anos que isso aconteceu.
Por conta disso, doenças que já estavam praticamente erradicadas por aqui, como o sarampo, estão voltando com força e fazendo um grande número de vítimas fatais. O país alcançou o 5° lugar no ranking mundial de casos da doença em 2019. Somando-se os casos dos últimos sete meses, o Brasil alcança o primeiro lugar.
Diante dos resultados e em tempos de uma pandemia de COVID-19, o efeito da desinformação gerada por grupos como esses em redes sociais pode gerar um problema de saúde ainda mais grave em nível nacional.
Embora o mundo ainda esteja aprendendo a lidar com – e a combater – a produção e a disseminação de notícias falsas por meios digitais, o Brasil já se movimenta para enquadrar essas atividades como crime.
Um dos projetos de lei que trata desse tema é o PL 3842/2019, da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que propõe acrescentar ao Código Penal a detenção de um mês a um ano ou multa para quem deixar de vacinar criança ou adolescente sob sua guarda e também para quem divulgar, por qualquer meio, notícias falsas sobre as vacinas do calendário nacional. O projeto ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados.
No Estado de São Paulo, a Assembléia Legislativa aprovou no dia 11 de março um projeto de lei que prevê multa a partir de R$ 5 mil para quem produzir e difundir informações falsas que afetem o interesse público ou tenham como objetivo a obtenção de vantagem de qualquer natureza. Apesar do pagamento de multa, a proposta não exime os autores das responsabilidades previstas em outras leis, como os Códigos Penal e Civil. O projeto ainda aguarda sanção do governador paulista.
O Ministério da Saúde também tem tomado providências para combater a desinformação. Foram criados a plataforma Saúde sem Fake News, que se dedica a desmentir boatos que circulam na rede, e um bot (espécie de robô virtual) que auxilia na checagem de informações específicas sobre a COVID-19 via Whatsapp. Para ter acesso ao bot, basta salvar o número +55 (61) 9938 0031 e enviar um “oi” para iniciar a conversa. Caso o acesso seja pelo Whatsapp Web, basta clicar neste link para interagir com ele.
As redes sociais também se movimentam para combater a onda de informações falsas que se espalha pela internet durante a pandemia. Facebook e Twitter afirmam que estão removendo conteúdos falsos sobre o coronavírus e direcionando os usuários que buscam informações sobre a pandemia para o Ministério da Saúde. No Instagram, a ação é semelhante, mas o redirecionamento é feito para a página da Organização Mundial da Saúde.
O YouTube lançou uma página específica para atualizar usuários sobre a pandemia. Além de excluir conteúdos falsos, a plataforma está bloqueando a monetização de conteúdo sobre o tema, exceto em canais já verificados. Já o Whatsapp, que é de propriedade do Facebook, não consegue coibir a disseminação das notícias falsas por conta da criptografia das mensagens. Portanto, o próprio usuário precisa estar atento às informações que recebem para não colaborar com essa propagação.
As medidas tomadas por autoridades e empresas de tecnologia e comunicação são um avanço, mas ainda falta muito para um cenário ideal. A União Pró-Vacina destaca que é preciso uma fiscalização mais efetiva e uma maior responsabilização dos usuários que criam e compartilham esse tipo de desinformação, além da desarticulação dos grupos que mantêm sites e páginas em redes sociais que funcionam como repositório desse conteúdo.
O mais importante, segundo o projeto, é investir na educação da própria população, já que o problema não é apenas o conteúdo falso, mas principalmente a falta de preparo do público para reagir de forma correta e barrar a disseminação das fake news. Iniciativas abrangendo alfabetização midiática, informacional e científica direcionadas a todas as idades e públicos são urgentes e fundamentais para que a sociedade possa ter uma opinião embasada em fontes confiáveis sobre esses temas.
A União Pró-Vacina é uma iniciativa organizada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) Polo Ribeirão Preto da USP em parceria com o Centro de Terapia Celular (CTC), o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID), os projetos de divulgação científica Ilha do Conhecimento e Vidya Academics, e o Gaming Club da FEA-RP.
O objetivo é unir instituições acadêmicas e de pesquisa, poder público, institutos e órgãos da sociedade civil para combater a desinformação sobre vacinas, planejando e coordenando atividades conjuntas durante todo o ano de 2020, explorando as potencialidades de cada instituição participante.
Entre as ações que serão realizadas estão: colaboração para elaboração e melhoria de políticas públicas; produção de material informativo; intervenções em escolas, espaços públicos e centros de saúde; eventos expositivos; combate às informações falsas e desenvolvimento de games.
Mais informações: https://www.facebook.com/upvacina.