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Mundo
30/11/2025 16:00:00

‘A comunidade internacional não está fazendo sua parte’, denuncia médico sudanês

‘A comunidade internacional não está fazendo sua parte’, denuncia médico sudanês

‘A comunidade internacional não está fazendo sua parte’, denuncia médico sudanês

Ao longo de minha trajetória profissional, desenvolvi um projeto em Timor Leste no período que se seguiu ao conflito pela independência do país em relação à Indonésia. Essa vivência mostrou que guerras deixam marcas profundas, destruindo vidas e gerando traumas psicológicos duradouros nas populações. Essas feridas se traduzem em ansiedade, depressão e impactos que comprometem o desenvolvimento de crianças e jovens. Conflitos atingem ainda serviços essenciais, fortalecem ciclos de violência e criam uma memória coletiva traumática que dificulta a reconstrução social e a consolidação de uma paz estável.

Nos últimos dez dias, tenho acompanhado com mais atenção a situação humanitária no Sudão e pude confirmar que o país se transformou no epicentro de um conflito brutal que destrói vidas e perspectivas, deixando cicatrizes que serão herdadas por gerações. Embora essa guerra seja devastadora, ela não é a única em curso no mundo, e não se pode ignorar o que acontece na Palestina, na Ucrânia ou em nações de diferentes regiões africanas.

Segundo dados de várias agências das Nações Unidas, conflitos armados em países africanos já provocaram o deslocamento de mais de 15 milhões de pessoas em locais como República Democrática do Congo, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Somália, Moçambique, República Centro-Africana e Etiópia. Em muitos desses territórios, as populações lidam com massacres, ataques a comunidades, recrutamento forçado, violência sexual e destruição de infraestruturas, resultando em fome extrema, colapso de serviços básicos e traumas profundos.

No caso sudanês, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados aponta que cerca de 10 milhões de pessoas estão deslocadas internamente, enquanto mais de 4 milhões buscaram refúgio em países vizinhos como Chade, Egito, Sudão do Sul e Etiópia, totalizando aproximadamente 14 milhões de pessoas obrigadas a deixar suas casas.

Diante desse cenário, entrevistei o médico Ahmed*, de 42 anos, especialista em emergências de saúde e atuante no desenvolvimento humanitário ao longo de grande parte de sua carreira. Sua última função no Sudão foi no Emergency Response Rooms (ERRs)**, e atualmente ele vive em Nairóbi, no Quênia.

Brasil de Fato RS: Como era sua vida no Sudão antes de decidir deixar o país?

Ahmed: A vida no Sudão era boa. Estávamos otimistas porque a revolução de dezembro de 2018 finalmente tinha derrubado o ditador Omar Al-Bashir e seu aparato de segurança. As pessoas estavam unidas, os jovens organizados, os direitos das mulheres estavam sendo defendidos e as liberdades ampliadas. Era o momento mais promissor da história recente do país. A situação seguia em melhora sob o governo civil de transição, até que as forças de segurança — SAF, liderada por Burhan, e RSF, comandada por Hemedti — assumiram o poder em um golpe em 2021. A disputa pelo controle do governo e dos recursos levou à guerra de 2023.

O que motivou sua decisão de sair do país?

Segurança para mim e minha família. Assistimos a confrontos, tiros e fogo antiaéreo nos nossos bairros. Tivemos de fugir para buscar proteção. Não nos deixaram levar nada. Saímos praticamente sem qualquer pertence e perdemos tudo o que tínhamos.

Quais foram seus maiores desafios como refugiado?

O desafio mais difícil foi reconstruir a vida, conseguir passaportes e documentos, já que perdemos todos os registros e certificados. Viver legalmente em outro país também foi caro e exigiu muito tempo.

Qual foi a rota utilizada para deixar o Sudão e em que país você está agora?

Fiquei cerca de um mês em Cartum sem eletricidade, água ou sinal de celular. Depois seguimos por estrada até o estado do Nilo Branco, cruzamos para o Sudão do Sul e chegamos a Renk. Permaneci dois meses em Juba antes de chegar a Nairóbi. É irônico, porque eu trabalhava na fronteira com o Sudão do Sul recebendo refugiados sul-sudaneses, e anos depois fui eu quem precisou cruzar a fronteira no sentido contrário.

O que você gostaria que o mundo compreendesse melhor sobre os sudaneses que vivem essa situação?

Gostaria que entendessem que ninguém ganha uma guerra. Todos perdem. E a comunidade internacional não está fazendo sua parte para conter a influência regional que continua financiando os grupos em conflito.

  • Ahmed é um nome fictício, usado para preservar a segurança do entrevistado.

** A Mutual Aid Sudan Coalition surgiu em abril de 2023, logo após o início da guerra, articulando as Emergency Response Rooms, redes comunitárias de voluntários inspiradas em práticas tradicionais sudanesas de solidariedade, como o nafeer, uma mobilização coletiva em que parentes e vizinhos se unem para enfrentar situações urgentes.

Adaptadas às condições de guerra, essas práticas resultaram em cozinhas comunitárias, clínicas improvisadas e evacuações médicas, tornando-se fundamentais em regiões de difícil acesso para grandes organizações.

Com mais de 26 mil voluntários, a coalizão prestou assistência a cerca de 657 mil pessoas entre 2024 e 2025, oferecendo alimentos, água, medicamentos e apoio hospitalar. Em outubro de 2025, foi indicada ao prêmio Holiday Impact Prize, do jornalista Nicholas Kristof, com cerimônia prevista para dezembro.

A atuação é realizada em coordenação com agências da ONU e Médicos Sem Fronteiras, demonstrando como tradições comunitárias podem se transformar em respostas humanitárias essenciais.